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No Brasil, há leis que ‘não pegam’. Ainda bem!

No Brasil, há leis que ‘não pegam’. Ainda bem!

No Brasil, há leis que ‘não pegam’. Ainda bem!

Um velho e grande amigo meu dos tempos da Faculdade de Direito de Curitiba, hoje advogado de nomeada, é um apoiador da Reforma Trabalhista. Ele anda um pouco contrariado porque vários itens da Lei 13.467/17 não estão sendo aplicados na prática e outros vêm sendo interpretados restritivamente por juízes e tribunais, inclusive com variadas pronúncias de inconstitucionalidade.

Na semana passada, na lista de WhatsApp de nossa turma de graduação, circulou uma decisão do TRT da 4ª. Região (0021452-23.2017.5.04.0232), interpretando de forma restritiva a nova redação do § 1º. do art. 840 da CLT, entendendo que a indicação de valor prevista na norma não importa em obrigatoriedade de liquidação do pedido. Pois aquele meu dileto amigo, inconformado com a jurisprudência gaúcha, recorreu ao clássico “somente no Brasil há leis que não pegam”.

Sempre digo aos meus alunos que, de fato, há no Brasil leis que “não pegam”. Mas os advirto: ainda bem que assim o seja! Porque este, na verdade, não é um fenômeno exclusivamente nacional. Há leis que “não pegam” nos Estados Unidos, na Dinamarca, no Japão, no Chile ou em Botsuana. Na verdade, em qualquer lugar do mundo minimamente democrático, ocorre o fenômeno que os americanos chamam de “backlash”: o repúdio geral a leis ou decisões judiciais estapafúrdias e bizarras, frontalmente desacordes com o hábito ou o senso comum (o ministro Luís Fux já até citou o backlash em um voto no STF, na ADC 29/DF).

Quem explica melhor isso é o papa da sociologia do Direito nos EUA, Lawrence Friedman (Impact – How Law Affects Behavior, Harvard University Press, 2016). O velho professor de Stanford ensina o que, de alguma forma, não deixa de ser algo um tanto evidente: leis completamente divorciadas da realidade tendem a ser descumpridas. As normas jurídicas não são respeitadas, essencialmente, por força de coerção estatal. Leis são observadas, sobretudo, porque espelham os valores culturais da sociedade a que se destinam. Ninguém se abstém de furtar objetos porque o art. 155 do CP o proíbe. As pessoas em geral não furtam porque sabem que isso é moralmente errado e, como tal, corretamente proibido pela norma jurídica. Uma lei que dependa, para sua eficácia, exclusivamente de coerção estatal, estará naturalmente destinada ao fracasso (a menos que estejamos em Estados autoritários como Cuba ou China; lá as leis quase sempre “pegam” – na marra).

Não é coincidência, aliás, que os americanos tenham trazido a expressão “backlash” para o mundo das leis. Todo o direito dos EUA foi construído e desenvolvido a partir de uma profunda e sensata “desconfiança do legislador”, por considerarem os americanos que este sempre tende a agir como juiz de sua própria causa (vide Artigo Federalista número 10, de James Madison: “o que são diferentes categorias de legisladores senão advogados e partes nas causas que decidem”?). Tanto isso é verdade que foram eles quem inventaram o controle de constitucionalidade das leis, o qual, apropriadamente, denominam de “judicial review”, pois se trata, efetivamente, de uma revisão judicial dos atos legislativos. E, afinal, o que é o controle de constitucionalidade, se não uma forma de determinar que leis inconstitucionais “não podem pegar”, porque simplesmente são nulas?

Os founding fathers realmente não eram nada inocentes. Sabiam que as câmaras legislativas são a morada predileta das paixões políticas e dos interesses mais mesquinhos; por isso, não raro, os órgãos legiferantes agem como inimigos da razão e do bem comum. Se todas as leis bizarras e estapafúrdias que nossos parlamentares adoram produzir “pegassem”, então viveríamos sob a tirania da maioria. Por isso, Tocqueville escreveu em “A Democracia na América” que o sucesso do experimento democrático nos EUA se devia à existência de juízes independentes que pudessem controlar e mitigar os desatinos do legislador. E, também, ressaltou a importância da imprensa livre e de associações civis, que fossem capaz de criticar o legislativo e se organizar para mudar as leis.

A possibilidade de rejeitar a lei em países democráticos não é apenas institucional. Ela ocorre espontaneamente, por vezes de uma forma que sequer percebemos, como uma “desobediência civil silenciosa”.

Tempos atrás, aprovou-se por aqui uma lei estadual que obrigava os feirantes a venderem suas bananas a quilo, e não por dúzia, como é tradicional. Acontece que as bananas são vendidas por dúzia no Brasil há uns quinhentos anos, desde que as primeiras bananeiras foram trazidas pelas caravelas, da Ásia. Então, o legislador caprichoso, sem ter muito o que fazer, resolveu mudar o hábito de séculos, na base do canetaço e do “publique-se e cumpra-se”. Evidentemente que as bananas continuaram a ser vendidas às dozenas, inclusive porque os fiscais da prefeitura têm coisa mais importante para fazer do que fiscalizar vendedores de banana. E os consumidores, que em tese seriam beneficiados, também não deram a menor pelota para a norma jurídica, porque sabem se proteger negociando o preço ou mesmo a quantidade desta indispensável e saborosa fruta (eu, por exemplo, quando as bananas estão muito pequenas, exijo uma dúzia de catorze unidades, na feira da praça Serzedelo Correia).

E, por falar nisso, não é coincidência também que a própria ideia de “desobediência civil” tenha surgido nos EUA, a partir de uma concepção de “justiça das leis”. Foi o escritor americano “transcendentalista” Henry David Thoreau (1817-1862) quem cunhou a expressão (e escreveu um livro sobre isso), ao se recusar a pagar impostos em protesto contra a escravidão e a intervenção dos EUA no México. O seu livro, “Desobediência Civil”, conquistaria um importante leitor no século XX: Mahatma Gandhi.

Outro fator que nos Estados Unidos corrobora para a “desconfiança do legislador” decorre da própria tradição da Common Law. A jurisprudência é ali a principal fonte de desenvolvimento do direito, o qual é criado a partir de sua aderência concreta à realidade de conflitos sociais objetivos. Por isso, Roscoe Pound, um dos maiores juristas norte-americanos da primeira metade do século XX, afirmava: “a legislacP7;aM1;o, quando naM1;o se limita a colocar em forma de lei vinculante o que jaL9; foi adquirido pela experieM0;ncia jurisdicional, implica todas as dificuldades e perigos proL9;prios da profecia”.

Embora sigamos em nosso país outra tradição jurídica, a da Civil Law, na qual o legislador é o protagonista do direito, tampouco pode ele, em razão do proeminente papel que se lhe é reservado, descurar do hábito, da tradição ou do costume. Machado de Assis, que cobria o Senado como jornalista e conhecia intimamente os meandros do legislativo, observou que a lei tinha uma evidente e notória precariedade sobre o costume e a tradição: “A lei escrita pode ser obra de uma ilusaM1;o, de um capricho, de um momento de pressa, ou qualquer outra coisa menos ponderaL9;vel; o uso, por isso mesmo que tem o consenso diuturno de todos, exprime a alma universal dos homens e das coisas. ”

É evidente que não estou prevendo e muito menos pregando uma ampla e geral desobediência civil às normas da Reforma Trabalhista. Apenas constato que normas jurídicas aberrantes tendem a ser solenemente ignoradas pelos seus destinatários. E, isso, lembre-se, já ocorreu com aspectos da “primeira” reforma trabalhista, nos tempos do governo FHC: alguém pode me informar por onde andam as Comissões de Conciliação Prévia? Eis aí uma norma jurídica que caiu em desuso antes mesmo de ser usada!

E, vamos e venhamos, a Lei da Reforma Trabalhista está cheia de furos e estroinices, que fragilizam sua concretização (eu ia dizer, sua “pegação”). Tanto é que o próprio Senado reconheceu uma série de problemas no então projeto de lei, mas dada à “urgência” na sua aprovação (pois ela iria fulminar imediatamente o desemprego, o que não ocorreu), pela primeira vez, em quase duzentos anos de história parlamentar, aquela egrégia casa legislativa inovou e “absteve-se de legislar”, pois alguns de seus provectos membros fizeram um “acordo político” com o Executivo, que prometeu vetar os pontos controversos da norma. Bem, o veto não veio, pois o Presidente da República mudou de ideia e decidiu substituí-lo por uma Medida Provisória, a qual, no entanto, precisava ser aprovada pela Câmara dos Deputados, cujo presidente, porém, não chancelara o acordo entre a autoridade do executivo e o Senado (como diria Garrincha na Copa de 1958, “faltou combinar com os russos”). O resultado prático e patético desta lambança legislativa todos conhecem: a Medida Provisória caducou e o governo a substituiu por uma … Portaria Ministerial! Bem, eu aprendi na faculdade que há uma diferença grande entre ato legislativo e ato administrativo, mas parece que o Poder Executivo, chefiado por um professor de Direito Constitucional, abandonou todas as veleidades jurídicas. Enfim, o fato é que agora há uma tremenda insegurança jurídica envolvendo diversos pontos duvidosos e controvertidos da Reforma.

Então, não é de admirar que a norma “não esteja pegando”. E, vejam só, inclusive porque há boa parcela do patronato que não está aderindo a algumas de suas normas. Um simples exemplo: qual é o diligente empregador que, no gozo pleno de suas faculdades mentais, irá contratar trabalhadores intermitentes, diante do quadro de insegurança jurídica que cerca essa nova forma contratual?

***

Pareceu-me, por tudo isso, bastante preocupante a desastrosa declaração do ex-presidente do TST, ministro Ives Gandra Filho, atribuindo aos juízes a culpa pelo fiasco legislativo que é a Lei 13.467/17. À Folha de São Paulo, disse Sua Excelência que “se esses magistrados continuarem se opondo à modernização das leis trabalhistas, eu temo pela Justiça do Trabalho. De hoje para amanhã, podem acabar como ela”.

O ministro Ives quer obrigar os juízes a fazerem com que a Reforma Trabalhista “pegue”, da forma que ele entende que a lei deve pegar, abstraindo-se-lhe as incongruências, inconsistências e inconstitucionalidades. Em outras palavras, quer que a lei pegue na marra. Como disse lá trás, essa é uma concepção claramente autoritária do Direito.

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